O maior desastre que se deu na nossa costa, onde teve papel importante o serviço de porta-cabos. Trata-se do encalhe do Veronese, cargueiro inglês que trazia a bordo cerca de 219 tripulantes e passageiros.
O caso do Veronese constitui o maior salvamento por cabos de vaivém na história trágico-marítima de Portugal e foi um dos maiores salvamentos da Europa, tendo sido saudado por todas as instituições de socorros a náufragos da época.
Encalhou o Veronese a meio da noite, cerca das 04:00 horas de 16 de Janeiro de 1913, sob rigorosa invernia com chuva torrencial, vento muito forte, nevoeiro denso e cerrado e mar encrespado com vagas impetuosas e altas, nos rochedos que bordam a praia de Nossa Senhora da Boa Nova, a norte de Leixões, e que se estendem pelo mar dentro até 350 metros da costa. O mar, levado pela fúria do vento, rebentava por toda a parte, desfazendo-se num lençol de espuma que chegava à praia por cima de vagas alterosas.
A água invadira o navio, as câmaras e os porões foram de imediato inundados, obrigando a refugiar-se na tolda os passageiros estremunhados, que, cá fora, encontram de novo o mar varrendo o navio de bordo a bordo. Um paquete inglês de passageiros 'Veronese' de 7877 toneladas, construído em 1906 nos estaleiros 'Workman, Clark & C.ª, Ld.ª' de Belfast, pertencia à casa 'Lamport & Holt Line' representada em Portugal pela empresa portuense 'Garland Laidley, Ld.ª', tinha deixado o porto de Vigo (onde embarcaram 100 pessoas) a 12/01/1913, domingo, navegando de Liverpool para Buenos Aires com 139 passageiros e 93 tripulantes a bordo num total de 232 pessoas,
Entre a terra e o Veronese estendiam-se os rochedos, cujas pontas negras e aguçadas emergiam aqui e além. O navio, bem encaixado no meio das rochas, não podia fazer uso das suas embarcações no meio do mar bravio.
Vendo a importância do sinistro foi chamado todo o material das estações de bombeiros da Póvoa de Varzim, de Vila do Conde, da Foz, de Matosinhos e Leça da Palmeira e do Porto. Acorreram também ao local do sinistro a policia, alguma tropa e muito povo que enchia a praia.
Face à impossibilidade de qualquer embarcação se aproximar do navio naufragado, houve necessidade de recorrer ao lançamento de foguetões de terra para bordo, com o objetivo de permitir estabelecer cabos de vai-vem: na 1.ª série de disparos, e durante 3 dias e 3 noites, foram tantos os foguetões utilizados cujos cabos rebentavam a espaços ao roçar na penedia, que o reposicionamento fez esgotar a quantidade total do equipamento disponível na cidade, 18 fogetões.
Nestas circunstâncias, alguns dos presentes, exímios nadadores, disponibilizaram-se, pondo em risco as suas próprias vidas, para levar para bordo um cabo salvador, que ajudasse à montagem do vai-vem. Entretanto, também do navio preparavam a descida de um escaler, ainda preso aos turcos, carregando um amontoado de gente. Foram também persuadidos a aguardar por outra forma de salvamento, pois que a embarcação ao ser lançada ao mar, seria de pronto projetada contra os rochedos, despedaçando-se de seguida.
Eis que como medida extrema e esgotados todos os outros meios, são chamados os Bombeiros Voluntários de Viana do Castelo que vieram de comboio, transportando todo o material disponível de lança-cabos.
Finalmente, houve um tiro de sorte (1), por sinal enviado pelos Bombeiros de Viana do Castelo, que eram os que tinham vindo de mais longe, o 19.º foguetão chegou ao navio conseguindo vencer a distância e as condições adversas de tempo motivadas por vento forte e contrário, o cabo mensageiro foi substituído pelo cabo de vaivém, mais forte e que vai suportar a bóia-calção para o salvamento.
Por ela vêm para terra, numa manobra que vai durar 52 horas consecutivas, 98 náufragos. Nesta faina de trazer a bóia-calção a terra e colocá-la novamente a bordo foi necessário alar à mão cerca de 70 quilómetros de cabo.
O primeiro náufrago a chegar a terra foi uma jovem de quinze anos, Dorothy Alcoy, e, dizia-se a bordo, que todos abriram alas para que se salvasse antes de tudo a juventude e a beleza.
A seguir chegou a terra uma mulher desmaiada, mas com o filho tão apertado ao colo que o mar não lho pôde levar.
A mobilização para dar apoio aos náufragos foi geral e espontânea. Foram colocados médicos e enfermeiros numa tenda, para atendimento urgente sobre as areias da praia, no posto da Guarda-fiscal ali próximo e na capela do oratório da Boa Nova, assistidos pelas esposas dos mais destacados membros da sociedade de Matosinhos e do Porto.
Em 350 metros de cabo, a catenária era enorme e durante o percurso do navio para a praia os náufragos mergulhavam em parte no mar.
As dificuldades eram muitas, a bóia-calção vinha muitas vezes por dentro de água porque a cabrilha normal do equipamento dos bombeiros é baixa, foi então que no inicio do dia 17, enquanto se procedia a diligências para o restabelecimento da ligação com o barco, um homem, lavrador com terrenos no lugar de Ródão, em Leça da Palmeira, que vendo o esforço das várias corporações de bombeiros voluntários accionarem os seus foguetões em sucessivas tentativas para fazerem chegar os cabos de vaivém ao navio naufragado caírem goradas; teve a perspicácia e oportunidade de se aperceber que, pela altura das cabrilhas entretanto instaladas no areal, quando conseguissem montar novamente o cabo de vaivém, a bóia calção, trazendo os náufragos, não teria outra hipótese que não fosse a de mergulhar nas águas gélidas e revoltosas.
Então, pensou e rapidamente, na sua mente, surgiu uma ideia. Dirigiu-se ao areal indagando quem comandava as operações, com quem chegou à fala, propondo-lhe a sua solução que de imediato foi aceite! Propôs a montagem de duas varas de pinheiro, que foi buscar às suas bouças, muito mais altas do que a cabrilha por onde passava o cabo, trazendo a bóia-calção acima das ondas e com mais facilidade para todos incluindo aqueles que puxavam o cabo e os náufragos que iam chegando à praia, e que foram em tal número que foi estabelecido o record de salvamentos por este meio.
Este homem generoso e simples chamava-se Manuel António José Correia, conhecido como o António “Rato” de Ródão, que na sua generosidade e grandeza de alma nunca aceitou qualquer homenagem, condecoração ou sequer referência ao seu nome nas listas daqueles que se distinguiram nos esforços desenvolvidos para salvamento dos tripulantes e passageiros do navio naufragado; VERONESE; contudo, mais tarde, recebeu daquela companhia como reconhecimento, uma cigarreira em prata, na frente da qual se pode ver gravada a bandeira da companhia a cores e as referências “Boa Nova”, “16th January 1913”.
Segundo as palavras de Hypácio de Brion, "nunca em parte alguma do mundo se fez trabalho semelhante", dando origem a que se recebessem elogios de França, Inglaterra, Holanda e Espanha.
Tomaram igualmente parte nas operações de salvamento forças da P.S.P., da Guarda Republicana e da Guarda Fiscal. E foram também posicionados os salva-vidas PORTO, de Leixões, sobre o comando do patrão Aveiro e o CEGO DO MAIO, vindo da Póvoa de Varzim, com o seu arrais, o patrão Lagoa, transportado pela via-férrea, livre de encargos, que só puderam intervir ao 3.º dia, quando o mar o permitiu, e mesmo assim foram responsáveis por 103 salvamentos. E muito povo.
Conhecedor da tragédia, o Guarda Marinha Antonio Costa, Delegado Marítimo da Póvoa de Varzim, fez seguir para Leixões o salva-vidas poveiro “Cego do Maio”, “na esperança de que os heroicos e destemidos pescadores poveiros pudessem prestar o seu valiosíssimo auxílio”:
segundo ele, “apesar de não lhe terem sido requisitados socorros, a Comissão Local do Instituto de Socorros a Náufragos, julgou seu dever providenciar para que o salva-vidas “Cego do Maio” fosse transportado (a pulso, por mulheres e homens), para a estação de caminho-de-ferro donde seguiu em comboio especial com destino ao local do naufrágio”;
quando chegaram ao local do naufrágio, os tripulantes do “Cego do Maio” foram recebidos com lágrimas de emoção e de alegria pelo povo que via nos poveiros uma raça de bravos e ousados pescadores implorando-lhes o salvamento dos náufragos;
olhando para o navio encalhado, desabafava o Patrão Lagoa: “é uma dor de alma ver aquela gentinha, toda molhada, aflitíssima com a morte tão perto e eu sem lhes poder valer!”;
o mar “estava um cão”.
Só ao 3.º dia, 19/01/2013, o estado do mar permitiu o salvamento de 103 náufragos, o último dos quais foi o seu capitão Charles Turner, sem que se tenha conseguido evitar a morte de 18 passageiros: por intermédio dos salva-vidas Cego de Maio e Rio Douro, que não se puderam aproximar muito do navio, mas que por meio de cabo conseguiram salvar os 103 náufragos.
Salvaram-se duzentos passageiros e tripulantes e calcula-se que pereceram dezanove.
Nesta tragédia marítima de salvamento por porta--cabos, o mar embravecido, os navios e as rochas ponteagudas constituíram o cenário; os protagonistas eram os náufragos transidos de medo a bordo, mas os verdadeiros heróis foram os bombeiros anónimos de várias corporações que, dia e noite, durante 52 horas seguidas, conforme já referido, conseguiram salvar quase cem almas.
Casos há verdadeiramente chocantes:
uma mãe que carrega 2 filhos, perde um deles arrebatado pela violência das ondas; o cabo de vai-vem que se parte, deixando o náufrago à deriva, sem forças para lutar pela vida; congestões inoportunas;
familiares que desaparecem, maridos que procuram pelas esposas, pais que tentam localizar os filhos, numa correria desenfreada pelos diversos postos de serviço, desesperados, inutilmente.
Comum aos sobreviventes a exposição à dor, em rostos marejados de lágrimas sentidas pela inesperada quebra nos laços de sangue. Por cá encontraram sepultura, em campa rasa, espalhados por vários cemitérios, entretanto preparados para os receber.
A bordo, o paquete de passageiros trazia 221 pessoas e dos passageiros faziam parte cinco portugueses, sendo os restantes espanhóis, ingleses e alemães.
Estes portugueses eram:
José Cerqueira, de Freixieiro, José Fernandes, de Monção, António Carvalho, de Freixas – Mirandela, João Afonso Veloso, de Monção e Carlos Teixeira de Freitas, sobrinho do Visconde da Ribeira Brava e que já naufragara outras duas vezes, uma no “Mauritânia” e outra no iate “Maria”.
Pouco depois da tragédia do Veronese, o bombeiro José de Brito, primeiro patrão do Estado-Maior dos Bombeiros Voluntários do Porto, resolveu estudar a construção de um carro porta-cabos em que tudo estivesse arrumado de tal maneira que viesse às mãos na altura própria e sem confusões, no desenrolar de um salvamento marítimo com aquele material.